SÃO PAULO - Mesmo com toda a inteligência que possui sobre os morros cariocas, o Exército teria mais dificuldades para vencer o crime no Rio de Janeiro do que enfrentou no Haiti, diz o coronel Cláudio Barroso Magno Filho, que comandou a ação das tropas brasileiras na pacificação da região mais violenta do Haiti, Cité Soleil, reduto histórico de bandidos e considerado pelas Nações Unidas um dos lugares mais violentos do mundo em 2004, quando uma missão de paz da ONU desembarcou no país.
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Uma ronda na região mais violenta do Haiti"O Exército tem informações de inteligência sobre o crime organizado nas favelas do Rio, desde o terreno até o inimigo. Sabemos todos os acessos, principais pontos do tráfico, quem são os líderes criminosos de cada área e qual o tipo e a quantidade de armas que eles têm. Isso pode ser compartilhado desde já. O que deu certo no Haiti e que daria certo aqui é a integração. As tropas brasileiras, sozinhas, sem apoio de outros países e da polícia haitiana, não teriam conseguido nada", revela Barroso Magno, que, após 37 anos como militar, foi para a reserva em junho, quando voltou da missão de paz.
Antes de ir para o Haiti, Barroso Magno era responsável pelo planejamento de possíveis atuações militares na segurança pública carioca. Ele reage à colocação do Exército como protagonista de ações: "A situação no Rio é muito mais complexa. O Exército jamais atuará sozinho, sempre estará integrado aos demais órgãos de segurança pública e agentes da sociedade civil".
Como aqui os criminosos buscam manter o ponto de venda de tráfico e são mais fortemente armados e organizados, a resistência seria maior, acredita ele. O Haiti não tem mercado consumidor de drogas: extorsões, seqüestros e suborno por segurança, além de influência política, sustentam as gangues.
"Nosso objetivo lá não era isoladamente combater o bandido.A meta era mudar a atitude da população em relação à situação. Em um clima de descrença, em um local em que as pessoas viviam com medo e o Estado não atuava, a gente entrou, ganhou território e ficou, não saiu mais. Queríamos mudar a lógica do jogo e fazer com que a sociedade percebesse que estávamos ali lutando por eles, e para ganhar", lembra Barroso Magno.
De dezembro de 2006 a março deste ano, com 12 operações militares e dezenas de outras policiais, as tropas internacionais, lideradas pelo Brasil, conquistaram Cité Soleil, prendendo mais de 400 pessoas, expulsando e matando importantes criminosos e empossando o prefeito, em um local onde até então o Estado não entrava.
O coronel critica aqueles que dizem que o Exército é preparado somente para a guerra, usa armamento pesado e teria dificuldades em confrontos urbanos. "Em Porto Príncipe (capital haitiana), o Exército mostrou que pode se adaptar e está preparado para combater em cidades. As regras de engajamento são claras: só se atira quando a sua vida ou a de alguém está em perigo, e se exige proporcionalidade. Eu não vou atirar de fuzil em quem me atira pedra. E isso que a gente estava lá para impor a paz, tinha ação ativa, invadia o território do inimigo para expulsá-lo e para ganhar. Mas não era por isso que sairíamos matando. A população percebeu isso e passou a confiar na gente", explica. A maioria das operações ocorria durante a madrugada para evitar o que os militares chamam de "efeitos colaterais": inocentes mortos ou feridos.
Ordenamento jurídicoEle pondera, contudo, que o ordenamento jurídico brasileiro não dá às Forças Armadas poder de polícia, podendo apenas atuar em ações de garantia da segurança quando o presidente da República determina. Uma lei complementar deu aos militares poder de polícia para atuar na fronteira. O mesmo poderia ser feito para a ação contra o crime organizado urbano. No Haiti, os militares possuem legalidade e liberdade para ação, sob um mandato do Conselho de Segurança da ONU que autoriza o "uso de todos os meios necessários" para vencer a criminalidade.
"Se o governo do Rio liderar um processo de integração, as Forças Armadas podem ser mais um vetor a mais nesse processo. Se não tiver poder de polícia para atuar, pode contribuir com logística, inteligência, planejamento e recursos humanos. A grande lição do Haiti é que não se faz nada sozinho. E a sociedade tem que estar a nosso favor. Não adianta o policial estar ali, arriscando sua vida, se no dia seguinte vai ser criticado e pode estar no banco dos réus. A gente mostrava para os haitianos que, apesar de nós estarmos carregando uma bandeira verde-amarela no braço, estávamos lutando pelo Haiti. Eles entenderam isso e estavam do nosso lado", diz Barroso Magno.
TáticasOutra explicação para o sucesso do Brasil na pacificação das regiões mais violentas do Haiti é, segundo o coronel, a continuidade. Após entrar em uma região, os brasileiros ocupavam prédios altos que até então eram sede dos bandidos, transformando-os em "pontos-fortes", espécies de quartéis-generais que buscavam a permanência dentro do território do inimigo o aumento constante da área de influência.
Isso pode ser constatado na prática na favela Tavares Bastos, no zona sul da capital fluminense, considerada pelo governo do Estado como a única onde o tráfico não domina. De agosto a dezembro de 2000, o Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope), a tropa de elite da Polícia Militar, fez uma série de operações no morro, expulsando os criminosos e montando sua sede no topo do morro. Desde então, não saiu de lá. E o crime nunca mais voltou.
Outra tática utilizada no Haiti e que pode ser aplicada são as ações diversionárias: incursões coordenadas em vários locais ao mesmo tempo, iludindo os criminosos sobre a real intenção dos militares. "A gente tentava dar um drible, usava a ginga brasileira. Nunca fazia a mesma coisa, inovava sempre. Enquanto eles achavam que a gente queria algo e tentavam se defender, estávamos tomando um outro local. Quando os bandidos percebiam qual era realmente nossa intenção, já era tarde demais", lembra Barroso Magno.
Em prática no RioA estratégia foi colocada em prática na Mangueira quando o Exército subiu o morro, em maio de 2006, para recuperar as armas roubadas de um quartel no Rio: as tropas avançaram pela frente do morro até uma linha imaginária a partir da qual receberiam ataque dos criminosos. Enquanto os traficantes se mobilizavam para conter o avanço dos militares por um lado, soldados tomaram o morro do outro lado, pelas costas dos bandidos.
"Quando viram, a gente já estava lá encima, no topo da Mangueira, e eles não tinham saída. A área era nossa. A resistência que enfrentei na Mangueira foi muito menor do enfrentávamos no Haiti. Quando tomamos o topo, não havia outra solução. Se descêssemos, seria difícil subir novamente. Resolvemos então ficar para manter nossa presença, instalando pontos-fortes no morro", lembra o tenente-coronel André Novaes, que comandou as tropas do Exército no Haiti em 2005 e a ação militar nos morros cariocas.
Fonte: Estadao.com